Logo após deixar a reitoria da UFRB (2015), encontrei, em Brasília, alguns membros do Governo Federal e, sorrindo, um deles me diz:

- Reitor, estávamos numa reunião apresentando um balanço da expansão das Universidades Federais e começaram a dizer que os nossos dados estavam equivocados. Sabe por quê? Porque a UFRB aparece como a universidade com maior número de docentes dentre as instituições criadas nesse período. Teve uma participante da Reunião que exclamou com espanto: “Esses dados estão certos? Explique sobre a UFRB: que imensidade é essa?”

Foi interessante perceber que aqueles números da UFRB (cerca de mil docentes em dedicação exclusiva), que eu conhecia em detalhes, ganharam relevo naquela reunião, despertando surpresa entre os presentes. Eu mesmo já tinha vivenciado esse espanto em outras reuniões. 

Aquela foi uma longa construção, anos de muito trabalho e de muitas pessoas, nas suas múltiplas dimensões. Muita “gente fina, elegante e sincera” participou desse processo.

Tomei posse como Reitor Pró-Tempore em 03 de julho de 2006, ainda nos festejos da independência da Bahia (02 de julho de 1823) e da fundação da UFBA (02 de julho de 1946). Tentei realizar a cerimônia de posse no dia 14 de junho, data que marca as comemorações da Ata da Câmera de Vereadores de Santo Amaro (1822) na qual os presentes reivindicaram a criação de uma universidade no Brasil. Lamentavelmente não havia espaço na agenda do Ministro da Educação. Exerci três mandatos seguidos. Permaneci na Reitoria até maio de 2015, quando fui convidado para assumir a Secretaria Nacional de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI/MEC).

Desde a campanha pela criação da UFRB e a assunção à Reitoria, a pergunta sobre como construir uma grande instituição, qualificada, universal, mas ligada ao seu tempo e lugar, foi a minha principal questão. A resposta sempre abrangia dimensões associadas ao projeto institucional, ensino de graduação e pós-graduação, a pesquisa, a extensão, a cultura, os vínculos profundos com o Recôncavo, a inclusão e permanência, a internacionalização, a contratação de professores e grandes obras físicas. 

Ficou evidente que a conquista de vagas de professores e técnicos e orçamento para as obras eram os pontos cruciais naquele período. Era necessário associar todas as outras dimensões do projeto a uma ação pragmática que se materializasse na consolidação de uma comunidade acadêmica significativa e em campi fisicamente qualificados. Associado a isso precisávamos desenvolver toda a burocracia administrativa da instituição, a começar pelo Estatuto, instituir regimentos, normas de funcionamento de colegiados de cursos, regimento de centros, burocracia de pessoal e um sem-número de normais supralegais para organizar o funcionamento da graduação, pós-graduação, pesquisa, extensão, assistência estudantil, políticas afirmativas, vestibular. Lembro o inusitado que foi, numa manhã chuvosa, junto com a Professora Dinalva Melo, parar com o meu carro em frente à Receita Federal e lá declarar: “Precisamos criar o CNPJ de uma universidade federal”. 

Logo nos primeiros anos, ficou evidente que havia diferença nas condições exigidas para a conquista de orçamento, de um lado, e para a contratação de pessoal, de outro. Nesse último caso, o processo era mais descentralizado, permitia ações técnicas mais específicas e avanços consistentes em cada programa lançado pelo Governo ou em janelas de repactuações.

Para a liberação de recursos havia a necessidade de uma articulação política e unicidade de reinvindicações das lideranças, condições não inteiramente presentes na Bahia. Nosso Estado, com tantas carências e sonhando com novas IFES, induzia a uma ação política das lideranças por reinvindicações de outras instituições, o que impedia o apoio ainda mais explícito à UFRB, àquela altura, já criada. Desde o início era evidente pelas primeiras ações orçamentárias que instituições em outras regiões do País já recebiam recursos muito mais vigorosos que os nossos. 

Aliado a isso, uma tempestade quase diluviana ditava o ritmo lento das obras da UFRB: uma equipe em formação e com pouca experiência na máquina pública (apesar de profundamente dedicada e competente), a incapacidade das empresas responderem às exigências da burocracia estatal - tínhamos um longo período de estagnação econômica e as nossas obras faziam parte, exatamente, do retorno do aquecimento da economia, e a forma de organização dos órgãos de controle no Brasil (completamente alienada da realidade socioeconômica brasileira). 

A minha relação com as universidades, em todo o período anterior ao Reitorado (1985 a 2005), processou-se numa época em que a restrição de contratação de pessoal era o fator que mais limitava as ações institucionais. Nessa direção, considerei que aí deveria incidir a minha atuação mais profunda. Ademais, ao contrário da maioria, nunca considerei que aquele momento tão criativo do Estado Brasileiro perdurasse por um longo período. Infelizmente, estava certo. A história demonstrava que aquela janela de oportunidade não duraria muito tempo.

Para nos diferenciarmos e consolidarmos a instituição, o caminho era a rápida ampliação da sua comunidade acadêmica. Resumindo: Enquanto a conquista de orçamento para obras era uma ação de articulação mais palaciana e com determinantes regionais explícitos, o processo de vagas para servidores docentes e técnicos tinha mais sutilezas e, com muito trabalho, paciência, bons projetos, convencimento e política, permitia avanços. 

Foi assim que escolhemos o caminho de expandir rapidamente a nossa comunidade acadêmica. Era a única forma possível de consolidar a universidade ainda na minha gestão. Adicionalmente, algumas dimensões do projeto, como mostrarei mais à frente, então inegociáveis, só poderiam ser implementadas com uma ampliação na contratação de pessoal docente e técnico-administrativos, para muito além do que garantia a Lei de criação da UFRB. 

Havia um evidente preço a pagar por isso. O improviso de espaços e a pressão da comunidade emergente sempre foi previsível e me preparei para suportar. Lembro de uma visita em 2008 do amigo Reitor Aloísio Teixeira (UFRJ), quando ele me disse em uma caminhada noturna em Cachoeira: “Tenha cuidado com essa opção, você pode não suportar a pressão, os reitores, em alguns casos, preferem mais os recursos do que expansão da comunidade, mas, talvez, realmente você não tenha opção. Lembre-se que implantar uma universidade num regime democrático, requer de nós ainda mais cuidado!”

Aloísio Teixeira destacou algo muito importante. Implantar uma universidade num ambiente democrático é uma experiência que merece ampla reflexão da sociedade. Fomos a primeira geração a enfrentar tal desafio na história do Brasil, pois, é importante lembrar, todos os outros processos de expansão das universidades federais ocorreram em períodos de restrições democráticas e/ou reitores com poderes autocráticos.  

As palavras de Aloísio foram premonitórias. Como lidar com uma ocupação de Reitoria exigindo o recuo na implantação dos campi de Santo Amaro e Feira de Santana ou para adiar por três ou quatro anos a implantação do curso de Medicina? Como pedir paciência histórica a uma comunidade crescente e que corretamente exigia condições melhores imediatas?  Em alguns momentos mais agudos dessas crises, ouvi do Professor Luiz Nova e do Governador Waldir Pires uma mesma frase (quase com as mesmas palavras) que me marcou profundamente: “Tenha sempre paciência, ser democrata é uma escolha sempre dura, se a democracia fosse fácil de ser respeitada, todo mundo seria democrata.” Eles me falaram isso ante a uma dessas ocupações e a forte pressão da sociedade para que encaminhássemos a reintegração de posse. Abordarei essa questão em outro texto.

A decisão de enfrentar esse crescimento naquela janela histórica estava tomada. Nesse período, encaminhamos várias propostas ao MEC buscando sintonizar o projeto da nova universidade à realidade do Recôncavo e da Bahia e fomos, muito provavelmente, a única universidade federal a participar de todos os programas de expansão disponibilizados pelo Governo Federal entre 2006 e 2014. Além da consolidação do seu quadro de pessoal, a UFRB também foi uma das instituições que mais conquistou Cargos de Direção e Funções Gratificadas naquele período e isso foi fundamental para organizar uma consistente estrutura administrativa para a universidade nascente.

Na lista dos processos que conquistamos, sempre com oposição interna, destacam-se: REUNI (2007), Bacharelados Interdisciplinares (2008), adesão integral ao ENEM (2009), EAD (2010), Campus de Santo Amaro (2011), Campus em Feira de Santana (2011), Adesão integral antecipada à Lei das Cotas (2012), os dois cursos de Educação do Campo (2012), Programa de cursos de LIBRAS (2012), Curso de Medicina (2013), consolidação da área de engenharias no CETEC, Núcleo de Estudos de Impacto da Mineração (2013), Núcleo NUVEM - Programa de Formação Geral (2014), o curso de Tecnologia de Alimentos (2014). Adicionalmente a isso havia a operacionalização das contratações de servidores docentes e técnico-administrativos pactuados no processo de criação da Universidade.

Algumas ações da nossa expansão foram por adesão a programas do MEC, outras foram por articulação política (criação de novos campi, por exemplo) e outras, como a expansão das engenharias, o Núcleo NUVEM e os Núcleos de Sucesso Acadêmico foram em intensas discussões com o Ministério sobre a necessidade de consolidar áreas que precisavam de fortalecimento para conformar a nossa universidade. 

É certo que o ritmo que imprimimos ao processo de expansão da UFRB foi fora da curva na história institucional do Estado Brasileiro. Em dez anos, ao tempo em que implantávamos a instituição, mais do que dobramos o tamanho previsto para a Universidade na Lei Nº - 11.151, de 29 de julho de 2005. Isso determinava que tivéssemos que atuar de maneira sempre intensa e no limite, todo o tempo, para conseguir participar de programas que muitos atores diziam/pensavam que o Governo estava nos impondo. Em muitos casos contamos com a participação efetiva de grupos de interesses nos programas em implantação, em outros, tivemos que avançar solitariamente, com uma assessoria pequena, mas muito competente e solidária. 

Hoje é impossível acreditar, mas não eram poucas as pessoas da comunidade acadêmica, e da equipe da Reitoria, que falavam que aqueles projetos que buscávamos integrar, teriam novas edições “nos próximos anos” e que, portanto, não havia motivos para “a urgência do Reitor” na adesão àqueles programas. Urgência. Urgência Histórica!

Vale ressaltar que o MEC de então não foi limite para a estruturação da nossa instituição, muito ao contrário, a sua exigência se baseava na qualidade do que se estava propondo e na vontade de materializar as políticas públicas. Lembro, por exemplo, do entusiasmo da equipe do Ministério em apoiar o NUVEM e os Núcleos de Sucesso Acadêmico, considerados por consultores um avanço muito relevante para a permanência qualificada e simbólica dos nossos estudantes. 

É justamente nessas frestas possíveis na burocracia estatal que encontramos a possibilidade de construção de uma parte significativa da singularidade do que buscamos em uma instituição universitária. Talvez, por uma única vez na história do Estado Brasileiro, o limite para avançar nessa questão não estava no Ministério da Educação. Muitas vezes o limite estava nas próprias instituições.

À medida que fomos conquistando as vagas docentes e de técnico-administrativos, criando cursos, construindo prédios, recebendo estudantes, interagindo com o território, desenvolvendo a pesquisa e a extensão, uma universidade inteira, imensa, emancipatória, inovadora, contemporânea e ancestral, foi se erguendo imponente no Recôncavo. 

Em 2012, a professora Angela Davis em uma visita a Cruz das Almas nos disse: 

- “A UFRB é uma estrela do Sul Global!” 

Respondi:

- This is the Project!

Angela Davis participou, naquele ano, da edição do Fórum Internacional Pró-Igualdade Racial e Inclusão Social do Recôncavo. Já em 20 de novembro de 2006 estabelecemos o Dia de Debates e Ações sobre Inclusão Étnico-Racial e Social da UFRB. Essa Portaria já apontava diretrizes que se desdobravam em várias ações com vistas transformar aquela data na culminância de um processo formativo desenvolvido transdisciplinarmente, durante todo o ano, na Universidade e no Recôncavo. 

No ano em que deixei a Reitoria, 2015, a UFRB era a maior universidade do ciclo de expansão que começou em 2003. O Brasil contava com sessenta e três universidades federais e a UFRB ocupava a posição 34º. (trigésima quarta) em ordem decrescente de número de docentes (equivalência DE). Considerando que a expansão naquele período criou dezoito universidades federais, para alcançar essa posição a UFRB ultrapassou também o número de professores (Equivalente DE) de pelo menos dez universidades criadas em ciclos anteriores. 

Naquele mesmo período a UFRB já era a terceira maior instituição pública de ensino superior da Bahia, atrás da UFBA e UNEB. Adicionalmente, a estrutura de cargos e funções da UFRB também nos colocava, já neste mesmo ano, em boas condições de enfrentar o porvir -  o complexo científico/cultural emergente, que precisaria, para a sua sustentação, instituir instâncias de gestão profissionalizada capazes de fortalecer os nossos vínculos com o sistema de inovação tecnológica da Bahia e com equipamentos culturais do Recôncavo, passo estratégico para a sustentação acadêmica, tecnocientífica, cultural e financeira da instituição.  

Universidades mais antigas, criadas na década de 1980 e 1990, consideravam que a UFRB atingiu, já nos seus primeiros anos, um patamar diferenciado e superior em termos de estrutura administrativa e usaram a nossa instituição como exemplo para as suas justas reinvindicações.

Esses números não querem expressar nenhuma competição com as outras instituições. Os resultados são apresentados para mostrar que a estratégia estabelecida alcançou plenamente o seu objetivo nesse quesito. Esse processo tinha um objetivo cristalino: o estabelecimento de um complexo científico/cultural, firmemente associado ao território e organicamente inclusivo. 

Olhando em retrospectiva, ainda não vejo outra estratégia possível para alcançar os objetivos que nos levaram a participar dessa incrível e rara aventura de conquistar e consolidar, em um curto período histórico, uma grande universidade federal. 

O gestor deve fazer escolhas, em tempo real, muitas vezes sem intervalo para hesitação e, é certo, busquei ser profundamente fiel ao que considerava traduzir a minha missão histórica naquele período e aos compromissos que assumimos com o Recôncavo quando percorremos, quase uma centena de vezes, aqueles municípios em campanha pela conquista da UFRB.

É certo que as estratégias que usamos nesse processo para envolver a comunidade interna que se formava tiveram resultados limitados. Mesmo na equipe da Reitoria à época, alguns nunca concordaram com essa dinâmica que imprimimos na construção da UFRB. 

A única área em que houve improviso na UFRB foi nos espaços físicos. A intenção aqui não é dizer que essa é uma dimensão menor, ocorre que não tínhamos opção, era necessário passar por esse caminho. Nossos campi se localizam em cidades menores (com exceção de Feira de Santana) e isso reduzia em muito as opções de espaços disponíveis para adaptações. Nas outras dimensões da estruturação da universidade, notadamente no seu projeto acadêmico e estruturação administrativa, havia um esforço profundo para nos colocarmos sempre à altura dos grandes debates sobre a universidade contemporânea. A organização da nova instituição sempre teve as suas proposições construídas em bases teóricas sólidas e experiências de outros lugares bem avaliadas por especialistas. Formamos uma bela escola de gestão universitária.

A UFRB já nasceu plena de autonomia. Foi sempre delicado e difícil demonstrar aos integrantes da comunidade que o direito que cada um adquiria de participar daquela construção, imediatamente após passar a integrar a UFRB nascente, não resultava de adaptações/improvisos, mas do papel histórico que cada um se comprometeu a cumprir ao aceitar aquela função. Infelizmente, o mesmo sistema que determina esse mecanismo de implantação de uma universidade, valoriza muito pouco essas dinâmicas construtivas e, assim, essa oportunidade histórica, tão civilizatória e rara, não desperta interesse em muitos partícipes, premidos que somos pelo produtivismo acadêmico. 

Liderar a criação de uma universidade é organizar um sistema que, compreensivelmente, nem todos percebem em sua inteireza e cuja interconexão, sabemos, deve ser completa para o complexo operar. Precisamos nos preocupar com cada detalhe e esperar que todo o conjunto entre em movimento harmônico quando chegar a hora dos voos longos, surpreendentes e autônomos. “Voo perfeito no espaço que criamos” - escreveu o poeta e amigo Damário da Cruz. Incrível como o nosso cachoeirano dialoga com Hannah Arendt: “A criação de novos espaços humanos é o ato que melhor expressa nossa condição de seres livres.”

A história cultural da universidade brasileira é associada à união de escolas profissionalizantes, cuja integração administrativa foi bem resolvida, mas a interação na dimensão acadêmica, ainda hoje, varia muito Brasil afora.

É certo que esse modelo permitiu avanços monumentais na educação, cultura e ciência do País. Por isso, ele é tão fortemente plantado que mesmo instituições novas, buscam reconstituir esse padrão. Somos todos e todas oriundos dessa matriz e é compreensível que ele dê mais segurança para os voos autônomos das novas gerações acadêmicas. Mas é certo que ela não responde mais às questões científicas, tecnológicas, culturais e relacionadas às políticas afirmativas do Brasil contemporâneo. Não há dúvidas que tínhamos/temos acúmulo para renovar esse modelo ao invés de reproduzi-lo quase acriticamente.

Há, muitas vezes, uma interdição do debate sobre modelos de universidade. O modelo hegemônico é percebido por muitos como um dado imutável e a tendência é considerar qualquer debate dessa dimensão como dispensável. Nossas novas universidades poderiam ousar muito mais, mas não nos permitimos.

Era perceptível em alguns setores da UFRB e em parte minha própria equipe, o incômodo com qualquer debate sobre a temática. Tive a oportunidade de ouvir relatos de alguns Reitores de universidades e isso, muitas vezes, se reproduz em outros lugares. A tendência é considerar que o modelo hegemônico responde ao “o que realmente interessa” (sic). Ouvi muito essa frase.

O nosso primeiro Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) – 2010/2014, apresenta explicitamente esse importante desafio: “a condição da UFRB como universidade multicampi, amplia as preocupações com o desenvolvimento de formas de interação e integração entre os Centros de Ensino, para não se incorrer no risco de concretizar o que Anísio Teixeira denominou de federação de unidades”.

Nunca tivemos dúvidas sobre a necessidade de seguir por outras direções e de resistir profundamente à uma universidade que atualizasse o modelo duplamente federativo, criticado por Anísio Teixeira -  uma federação de Centros autônomos e cada Centro como uma federação de colegiados e grupos autônomos. Essa construção requer negociações e diálogos permanentes para expor os graves prejuízos institucionais a médio e longo prazo. Sempre consideramos incontornável a necessidade da Administração Superior da Universidade enfrentar esse assunto. A ausência de tensões não pode ser alcançada por meio da desistência de princípios inegociáveis.

Para superar a forte tendência ao modelo federativo, estruturamos uma segunda dimensão/camada político-institucional, macro organizadora de ações acadêmicas estratégicas, constituída por um conjunto de órgãos complementares e suplementares, programas e eventos de ensino, pesquisa e extensão, transdisciplinares e integradores dos nossos campi, centros e áreas de conhecimento, que deveriam se constituir na expressão orgânica, cultural e formativa, do projeto coletivo da Universidade. As condições operacionais para a materialização dessa camada foram bem definidas e conquistadas no nosso Estatuto, Regimento, PDI e, principalmente, na estrutura de cargos negociados com o MEC. Iniciamos a sua implantação com a Superintendência de Cultura, o Núcleo Nuvem e os Núcleos de Sucesso Acadêmico, mas não houve tempo para consolidar essa matriz, à época, para nós, incontornável. Posteriormente, a UFRB decidiu não continuar implementando essa dimensão do projeto e todas as iniciativas nesse campo foram extintas.

Buscamos nos aproximar de um fazer universitário que almeja elevar o sentido da existência da vida formativa e social nos campi e também para as pessoas fora deles. Não há dúvidas que essas premissas, felizmente, persistem no cotidiano da UFRB, mas algumas das nossas inciativas mais explícitas com ambições integradoras e culturais não permaneceram. Considero importante que elas sejam registradas na história para reflexões futuras.

Refiro-me, particularmente, aos Bacharelados Interdisciplinares, ao Núcleo NUVEM, aos Núcleos de Sucesso Acadêmico e a Superintendência de Cultura. Buscamos com essas iniciativas o estabelecimento de canais de trocas mais profundos com o mundo e o espaço do Recôncavo; a ambição de contribuir para a formação cultural dos nossos alunos, indo além das formações profissionalizantes e aprofundar a institucionalidade da questão da permanência simbólica dos nossos estudantes na UFRB. 

Alguns projetos nunca foram unanimidades, como os Bacharelados Interdisciplinares - muito mais por força do corporativismo das carreiras profissionais do que por outros motivos. O Bacharelado Interdisciplinar em Saúde (BIS) antes de ser extinto mostrou a sua potência estelar nos seus diversos desdobramentos, por exemplo ao projetar a turma de medicina mais negra da história do nosso País, nos legando uma imagem que sempre será usada para expressar uma outra universidade possível. Outros projetos pareciam representar consensos consolidados, mas foram descontinuados - o Núcleo Nuvem, a Superintendência de Cultura e os Núcleos de Sucesso Acadêmico.

Ainda hoje entendo que essas nossas construções foram respostas a questões ético/institucional cruciais aos desafios da UFRB e não parece que dez anos depois foram encontradas outras respostas para os temas que essas iniciativas buscavam enfrentar. Ainda acredito que devemos buscar propostas alternativas, pois para alguns (não para todos, por óbvio) há um vazio difícil de ser explicado no projeto da UFRB. 

Pensar uma universidade para Recôncavo, não é uma tarefa fácil. Foi por estar no Recôncavo a razão pela qual tantas portas se abriram em apoio àquele projeto no programa de expansão das IFES e porque conseguimos ser a primeira universidade federal criada no interior da Bahia. 

O Recôncavo é seguramente a matriz mais densa da base cultural do Brasil. Por isso é merecedor de uma universidade que se institua capaz de estabelecer trocas permanentes e profundas com a sua gente, suas águas, seu solo, sua atmosfera, suas ancestralidades, seus viveres. 

Vale ressaltar que aqui nos referimos sempre ao Recôncavo Ancestral, antiga região geográfica, estudada por Milton Santos, Costa Pinto e Thales de Azevedo e que, como a nos desafiar permanentemente, revela na sua geoforma o corpo da ave mítica Sankofa - um símbolo adinkra da tradição do povo Ashanti, da África Ocidental.

O pássaro mítico voa para frente, tendo a cabeça voltada para trás e carregando no seu bico um ovo, o futuro. É possível perceber o dorso da Sankofa nas linhas que delimitam a Kirimurê (Baía de Todos os Santos). O limite interiorano do velho Recôncavo, em forma de fértil crescente (linda analogia de Fernando Pedrão), completa o corpo do nosso pássaro. A cabeça da ave é desenhada pelo território de Salvador (como não seria?), uma península triangular, banhada pelo mar da baía a oeste e sul. 

O Recôncavo Ancestral, na contemporaneidade, se desdobrou em outros territórios, mas essa região histórica ainda se constitui e sempre se constituirá, numa referência cultural única.  

Desde a criação da UFRB, há uma grande expectativa de que a nossa instituição atue profundamente para reinventar e fortalecer o Recôncavo Ancestral. Não como o espaço geográfico uno de outrora, cuja dinâmica sócio-histórica imprimiu compreensíveis dissociações territoriais, mas como espaço cultural que permanece se expressando material e imaterialmente e se revelando incontornável para a explicação do Brasil, do sul global e que precisa compor o necessário pensamento decolonial do nosso planeta.  A UFRB, nesse lugar e em conexão com o mundo, deve ser “a chuva que joga a areia do Saara sobre os automóveis de Roma”.

Não por outra razão foi a UFRB, dentre as instituições criadas nesse século XXI, aquela que muito provavelmente mais contratou docentes para as áreas de ciências sociais, humanidades e artes. A experiência da Escola de Agronomia da UFBA, em Cruz das Almas, que foi integrada à UFRB, revelava efeitos muito restritos do impacto sociocultural daquela unidade no Recôncavo. Consideramos que era necessário ter um projeto que tivesse efetivo efeito cultural no território e isso significava ir além, de forma equilibrada, das ciências duras e suas tecnologias na organização da nova universidade. 

Esta decisão não passou despercebida e foi motivo de críticas, à direita e à esquerda, em alguns circuitos da sociopolítica: “Paulo Gabriel precisa entender que o povo do Recôncavo tem que ser engenheiro!” 

Sim, a ideia sempre foi essa. Formar engenheiro, professor, médico, cineasta, psicólogo, músico e muito mais. Mas para nós interessava que essa formação ocorresse numa vivência singular nesse grande campus chamado Recôncavo, contribuindo para educar todo o território e sendo educado por ele.

A nossa tese considerava que as ciências sociais, humanidades e artes levam a um espraiamento maior da universidade no território e um consequente impacto cultural mais expressivo. Tivemos relativo sucesso nessa estratégia, mesmo sendo o resultado bem mais modesto do que imaginávamos. Talvez em decorrência da incontornável especialização e a burocratização da vida intelectual, essas áreas de conhecimento hoje permanecem mais fechadas nos campi e circuitos acadêmicos. A geração de espaços públicos, presenciais ou remotos, de integração universidade/sociedade é bem mais modesto do que, talvez ingenuamente, sonhávamos. Neste caso aparece a importância dos órgãos complementares e suplementares criando vetores de ações que estimulem esses professores, técnicos e estudantes em ações nos territórios.

Essa é a base da criação da Superintendência de Cultura. Ela deveria caminhar para se constituir num Instituto de Estudos Avançados de Cultura e do Recôncavo. A experiência em todo o mundo revela que é muito difícil uma universidade fortalecer alguns vínculos e projetos estratégicos, como deve ser a nossa ação no Recôncavo, sem lançar mão de órgãos complementares e suplementares, coordenando e dando direção às ações da sua comunidade, captando recursos, administrando espaços (museus, parques, reservas), liderando outras instituições públicas, privadas e do terceiro setor, organizando programas. Lembro que iniciamos conversações para a UFRB passar a administrar espaços como o Parque Histórico Castro Alves e o Museu Wanderley Pinho, mas não avançamos. Um outro projeto não implementado foi a Casa do Recôncavo, que deveria estar presente em todos os municípios interessados e abrangeria, com o apoio das Prefeituras/outros um conjunto permanente de atividades culturais formativas desenvolvidos por nossa comunidade universitária.

Nos caminhos que a UFRB seguiu, posteriormente, é interessante perceber que a extinção da Superintendência de Cultura veio acompanhada da completa integração da universidade e de sua ação institucional ao conceito de Territórios de Identidade e, assim, ao que parece, recuamos de ratificar permanentemente que a nossa matriz mais forte e singular é esse Recôncavo Ancestral – razão da nossa criação. Fortalecer tais territórios como desdobramentos geo-históricos do Recôncavo Ancestral pode ser um caminho para manter a tensão criativa que necessitamos para as trocas simbólicas locais e que em muito define a singularidade da nossa contribuição ao mundo. 

A Unidade Acadêmica-NUVEM, instituída para atuar nos processos de formação geral e afiliação acadêmica dos alunos da UFRB e os Núcleos de Sucesso Acadêmico formavam um conjunto que tinha como objetivo consolidar o processo que iniciamos com a criação da primeira Pró-Reitoria de Políticas Afirmativas do Brasil, ainda em 2006. As vagas de docentes, técnicos e cargos e funções foram autorizadas pelo MEC especificamente para essas ações.

O Núcleo NUVEM era uma unidade acadêmica com trinta docentes que deveria adotar estratégias e ações integradas de ensino, pesquisa e extensão para atuar nos processos de formação geral e afiliação acadêmica dos alunos de graduação e pós-graduação da UFRB, por meio de componentes como: Universidade, Sociedade e Ambiente; Diversidades, Cultura e Relações étnico-raciais; Conhecimento, Ciência e Realidade; Oficina de Leitura e Produção de Textos Acadêmicos; Laboratório de Língua Inglesa.

Os Núcleos de Promoção do Sucesso Acadêmico (um em cada Centro), ligados a Pró-Reitoria de Graduação, tinham a função de aprofundar estudos sobre a evasão e retenção dos estudantes em cada curso, conhecer o perfil do estudante egresso e acompanhar estudantes ingressantes de modo a colaborar com a sua afiliação à UFRB e também apoiar os discentes com singularidades no processo de aprendizagem nos semestres mais avançados e em período de estágio obrigatório.

Já à época em que atuei como Presidente da Comissão de Relatoria do Programa de Políticas Afirmativas da UFBA (2004) pontificava a necessidade de esforços para garantir a permanência qualificada dos nossos estudantes e isso envolve, necessariamente, ações relacionadas à engenharia institucional e a construção de itinerários formativos que considerem explicitamente esses desafios.

Os sistemas institucionais que muitas vezes tomamos como exemplos e muitos (à esquerda e à direita) sonham copiar, devem ser vistos com senso crítico. Eles foram historicamente moldados para receber alunos de uma pequena parcela da população que em geral já possuíam os “capitais” importantes para o sucesso escolar e que em muito simplifica o trabalho de formação. A nossa intenção foi sair dessa zona de conforto para buscar políticas acadêmicas que criam as condições para ampliar as chances de êxito acadêmico e sucesso educativo dos nossos alunos, em sua maioria com percursos formativos menos ortodoxos.

Considero esse o maior fracasso da nossa geração na busca por um modelo de universidade brasileira: não ter conseguido colocar esse tema como uma questão ética central do debate da instituição universitária nacional, inclusive como um fator de diferenciação adicional no grande conjunto do sistema público e privado de ensino superior.

Ainda devemos ao Brasil a estruturação de uma universidade pública que na busca da qualidade no desempenho de todas as suas funções, expresse nas suas estruturas administrativas e acadêmicas uma profunda sintonia com a permanência simbólica dos alunos. A educação permanente que pontificou Paulo Freire!

Não enfrentaremos esses desafios sem estabelecer sólidos processos de formação geral e afiliação dos alunos em toda estrutura acadêmica e administrativa das universidades, por meio de programas/órgãos integradores. Mesmo diante de oportunidades de avançar, a força cultural - sempre ela, do modelo das escolas profissionalizantes prepondera sobre o ideal universitário. Nem mesmo a busca de um ponto de equilíbrio parece ser tolerado pelas concepções hegemônicas. Isso demonstra a força do conservadorismo intelectual brasileiro, contra o qual lutaram incessantemente, dentre outros, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e, mais recentemente, Naomar Almeida-Filho.

Machado de Assis lembra que “alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões”. Sim, há muito para nos orgulharmos. É incrível ver a UFRB chegar aos vinte anos como uma universidade com mil docentes (equivalência DE), setecentos técnicos-administrativos, treze mil alunos, com cerca de noventa cursos de Graduação e Pós-Graduação, consolidada na pesquisa e na extensão e tão inclusiva e diversa. Percorrer os seus campi e perceber a vontade de beleza presente nos fazeres de tanta gente, a “lançar mundos no mundo”, faz sentir que construímos espaços com infinitas possibilidades.  Com tudo isso, tenho certeza: a UFRB pode ser o que ela quiser. E será!