A Universidade Livre do Brasil inspira-se em diversos processos que em diferentes momentos históricos e culturas diversas, no Brasil e no mundo, evidenciaram a busca da humanidade pela construção de espaços formais, não formais e informais de educação.

Assim, é possível citar as ágoras - espaços públicos por excelência, oriundos da cultura, política e vida social dos gregos, nos quais Sócrates no século V a.C. conseguia atrair multidões de jovens, seduzidos por uma nova maneira de buscar a verdade. Também na Grécia, Aristóteles (384-322 a.C.) dava aulas públicas no jardim de sua casa, o Lyceum.

Ao sul, atravessando o Mediterrâneo, na África Ocidental, temos a experiência tão rica e diversa dos Griot, pessoas que escolheram a vocação de preservar e transmitir as histórias, conhecimentos, canções e mitos do seu povo, por meio da música, como contadores de histórias e aconselhamento e, assim, ensinavam a arte, o conhecimento de plantas, tradições, histórias. Presentes em territórios que hoje formam países como Mali, Gâmbia, Guiné, e Senegal, eles se configuraram desde sempre como parte da cultura de povos como Mandingas, Fulɓe, Hausa, Songhai, Tukulóor, Wolof, Serer, Mossi e Dagomba.

Na Idade Média, a partir do século XII, surgiram na Europa as corporações de ofício. Elas reuniam os artífices de diversas atividades e tratavam do conhecimento envolvido nos seus afazeres, buscando inclusive garantir o monopólio nessas ações.  Essas corporações eram também ambientes de aprendizado do ofício e de estabelecimento de uma hierarquia do trabalho.

As primeiras universidades se constituíam em organizações sem formalidades -  centradas em corporações de mestres e estudantes, mas logo foram associadas à necessidade de uma autorização emanado do poder papal, do poder real ou de ambos. Desde sempre os poderes instituídos perceberam a necessidade de tutorar a geração e difusão do conhecimento como uma dimensão estratégica para a manutenção desses poderes.

Essa necessidade de preservar, espraiar e buscar novos conhecimentos sempre se intensifica em períodos de mudanças socioculturais paradigmáticas e foi assim que surgiram as primeiras universidades livres oitocentistas, voltadas à construção da cidadania por meio da democratização do conhecimento.

 A partir do século XIX, a medida que a democracia e a revolução tecnológica revelavam desafios inéditos aos Europeus, em setores progressistas daquela sociedade, afirmaram-se projetos voltados à formação de cidadãos para aquele novo mundo que nascia.  Aos olhos dos liberais, comunistas, anarquistas e republicanos, as universidades clássicas, demasiadamente burocratizadas e elitistas, não estavam aptas a responder aos desafios da democratização do ensino. Desse modo, esses setores construíram projetos de instrução e promoção das condições de vida do operariado. Foram inúmeros projetos de escolas profissionais, cartilhas e manuais de leitura popular e ensino laico, progressivamente generalizado a todos os grupos sociais.

Nesses espaços atuavam professores, estudantes e os próprios operários, dando origem ao conceito e modelo de universidade livre, tencionando o surgimento de extensões universitárias informais em toda a Inglaterra oitocentista, a partir da experiência da Universidade de Cambridge. Aquelas universidades livres planejavam seus cursos conforme a necessidade do público ao qual se dirigiam, para que ele estivesse apto a trabalhar o mais rápido e breve possível. Trata-se, portanto, de um modelo calcado no aspecto social de democratização do ensino e na formação profissionalizante. Nesse mesmo movimento, surgem as experiências designadas por “University Stettlements”, promovidas por estudantes universitários que realizavam sessões de esclarecimento em bairros operários, constituindo-se na base de projetos de universidades populares que se espalharam por toda a Europa, entre o final do século XIX e início do século XX. Inclusive, o Caso Dreyfus (1894 a 1906) influencia o surgimento de muitas iniciativas nesse campo. Evidentemente, o decisivo papel exercido nesse processo pelo romancista Émile Zola, marca o reconhecimento social do "intelectual”, expressão usada para designar professores, escritores, pintores e atores que passam a representar interesses mais universais de justiça estimula a vontade coletiva de contribuir para o fortalecimento da cidadania por meio da educação.

O Brasil possuiu no início do século XX duas universidades livres bem estruturadas, mas efêmeras, a Universidade  Livre  de  Manaus (1909/1926),  Universidade  de  São  Paulo (1911/1917), iniciativas isoladas, não reconhecidas pelo Estado e, talvez por isso, rapidamente   suprimidas, muito provavelmente por serem iniciativas independentes. O professor Luís Antônio Cunha, no livro “A Universidade Temporã: o Ensino Superior da Colonia à Era Vargas”, destaca que foi na Universidade Livre de São Paulo (1914 a 1917), que se iniciaram as primeiras experiências de Extensão Universitária no Brasil, caracterizadas por atividades variadas e sem sistematização acadêmica como cursos e palestras, destinados à população em geral.

Também no início do século XX a educação popular teve um importante momento no Brasil, associada ao movimento anarcosindical da década de 1920 e pelas campanhas de alfabetização na década de 1940 e 1950. Nesta perspectiva, enquadram-se as campanhas nacionais de alfabetização do Governo Federal, de 1947 ao final da década de 1950; a campanha “De pé no chão também se aprende a ler”, em Natal-RN, no início de 1961; o Movimento de Educação de Base, criado pela Igreja Católica, em 1961, com apoio do Governo Federal; o Movimento de Cultura Popular, surgido em Recife-PE, em 1961; os Centros de Cultura Popular, ligados à UNE, em 1962; a Campanha de Educação Popular da Paraíba, de 1962; e o Plano Nacional de Alfabetização, de 1963.

Esse período foi violentamente interrompido com o golpe de 1964 e dá início a uma nova fase de resistência à ditadura e da luta pela redemocratização das décadas de 1970 e 1980, marcadas pelo fortalecimento dos movimentos de educação e da educação popular como instrumento de organização dos movimentos populares.

Não há dúvidas de que as universidades brasileiras possuem um explícita dimensão popular e programas próximos aos oferecidos pelas universidades livres e nesse sentido, não há porque se pensar em suprir lacunas nessa área. Inclusive, a universidade brasileira foi capaz de reinventar o conceito de extensão e muitos especialistas consideram que a abordagem da universidade brasileira para esse eixo é, muito provavelmente, a mais refinada do mundo.

No entanto, é certo que em decorrência do novo significado que o conhecimento ganha para toda a sociedade contemporânea, notadamente para a cultura, a economia, o respeito à diversidade e a sustentabilidade, não há dúvidas que há possibilidades para construção de espaços relacionados ao fortalecimento de ações associadas à educação ao longo da vida e é nesse campo que firmamos esse projeto. Referimo-nos, portanto, a uma atualização conceitual das universidades livres oitocentistas, como, de resto, ocorre em iniciativas semelhantes em todo o mundo: diante dos desafios paradigmáticos da contemporaneidade, criar um espaço para democratizar a cultura de modo a possibilitar a autoconstrução cidadã.

Uma universidade livre tem como objetivo maior oferecer alternativas culturais e de formação educacional à sociedade, com uma estrutura complementar às ofertas institucionais voltadas à educação formal. Essas universidades livres têm como característica definidora a liberdade para gerar e transferir conhecimentos sem registros ou permissões governamentais.

São inúmeros exemplos em todo o mundo de iniciativas de sucesso de universidades livres, havendo, inclusive a Associação de Universidades Populares da França (AUPF) e a Associação das Universidades Populares da Suíça (AUPS).  Nos EUA, é possível citar a John C. Campbell Folk School, na Carolina do Norte e a Driftless Folk School, no Wisconsin.

No Brasil, dois exemplos importantes são a Universidade Livre do Meio Ambiente, criada em 5 de junho de 1991, em Curitiba – PR, em pleno funcionamento e a Universidade Livre de Música (ULM) que teve Tom Jobim como primeiro reitor e presidente do conselho, criada em 1989 e, infelizmente, convertida no Centro de Estudos Musicais Tom Jobim, em 2001. Essas instituições possuem arranjos, objetivos e público muito variáveis, mas têm sempre como princípio fundamental contribuir com a educação ao longo da vida e a educação popular na sociedade em que se insere.

Vale ressaltar que o termo universidade livre tem sido usado para nomear diversas ações na sociedade brasileira. Uma pesquisa na rede mundial de computadores releva iniciativas como: Universidade Livre da Inovação, Universidade Livre do Espírito (ULE), Universidade Livre Feminista, Universidade Livre para a Eficiência Humana (UNILEHU), Universidade Livre Oswaldo Cruz, Universidade Livre para a Consciência, Universidade Livre de Teatro Vila Velha, Universidade Livre Fora do Eixo. Essas iniciativas possuem diferentes características, a maioria se estruturam como um blog ou um portal, outras oferecem cursos presenciais ou por EaD e existem algumas mais estruturadas com uma significativa gama de ações.

A necessidade da adoção da educação ao longo da vida como base norteadora das políticas educacionais, requer uma articulação que busque estabelecer a sinergia dos diferentes modos de aprendizagem de maneira que ela se amplie para toda a duração da vida e generalize-se para todos os domínios dessa vida. Mais que isso, é fundamental ter como meta a construção de uma sociedade em que todas as pessoas possam participar desse processo de aprendizagem, planejando elas próprias seus percursos formativos e a associação destes com a sua inserção familiar, cultural, ambiental, social e, particularmente, com o mundo do trabalho.

Em janeiro de 2018 o município de Lauro de Freitas acolheu a proposta de realização de uma Universidade de Verão que desenvolveu sua programação o eixo temático: “Conexões Democráticas para uma Cidade Educadora”. Contou com a parceria de 11 instituições de ensino superior: UFBA, UNEB, UFOB, UFRB, UNIVASF, UEFS, IF Baiano, IFBA, UNILAB, UFMG, UFCG (da Paraíba), além do Governo do Estado. Foram dezesseis mil participantes e foram ofertados mais de 130 cursos e minicursos, palestras, oficinas, exposições, performances, shows e atividades esportivas. Todas essas atividades envolveram um público diverso, de Lauro de Freitas e de vários pontos do país. Ao final desse evento os participantes destacaram a necessidade de esforços objetivos para incentivar e dotar as pessoas de meios para participar mais ativamente em todas as esferas da vida pública moderna, em especial na vida social e política em todos os níveis da sua comunidade local, estadual, nacional e mundial e ficou deliberado que haveria um movimento por criação de uma Universidade Livre, com tais características, para, com base na cooperação solidária entre os povos, contribuir para o desenvolvimento da aprendizagem ao longo da vida, notadamente no Brasil e nos espaços ibero-americano e africano (relações sul-sul).

Todas essas reflexões e experiências práticas levaram à proposta aqui apresentada de criação da Universidade Livre do Brasil.

3. Os desafios de uma Universidade Livre para o Brasil Contemporâneo

O Brasil (2022/2023) chega no limiar de 200 anos de independência com uma longa história de distopia com a educação. Ao lado de discursos veementes sobre a importância desse direito, a nossa relação com a educação poucas vezes vai além daquilo que o educador Anísio Teixeira (1900-1971) em discurso proferido durante a inauguração da Escola-Parque (1950) chamou de formalidade social: “Veja-se, pois, em que círculo vicioso se meteu a nação. Improvisa escolas de todo jeito porque não acredita em escolas senão como formalidade social e para preencher formalidade de nada mais se precisa do que de funcionários que conheçam as fórmulas.”

Antes e depois da independência, o nosso País se estabelece sob a égide do mais profundo autoritarismo, em qualquer tempo inimigo da educação. O autoritarismo territorial pelo estabelecimento das capitanias hereditárias que ainda hoje tentamos democratizar. O autoritarismo político pelo colonialismo explícito no tratamento dos nativos e no estabelecimento de uma relação de subjugação de uma elite local que, em sua maioria, aceitou cordialmente um papel de subalternidade com a coroa de então e às outras de plantão, desejando sempre ser aceita por esses poderes distantes e não se constituindo com lideranças num projeto de País efetivamente soberano. O autoritarismo cultural determinado pela contrarreforma que começava na Europa quando do início da ocupação portuguesa. O Concílio de Trento durou entre 1545 a 1563. Nesse período, a Igreja foi no sentido oposto do cultivo da autonomia do indivíduo que de algum modo estava presente na reforma de Lutero. O autoritarismo Social na escravidão que dura 388 anos. O Brasil foi o país das Américas que mais profundamente teve a escravidão como motor do seu desenvolvimento interno e levou isso às últimas consequências. Fomos o último país do ocidente a abolir a escravidão.  Os negros só começam a se constituir numa presença marcante na escola depois da segunda guerra mundial.

Em meio a esse ambiente sociocultural autoritário, esse traço revela-se, e não poderia ser diferente, na própria organização da educação na medida em que o nosso sistema educacional começa a ser forjado com a chegada dos jesuítas da Companhia de Jesus, fruto da contrarreforma, em 1549, e nasce um fosso entre as escolas da elite e as do pobre, além, evidentemente, daquela imensa maioria que não tinha acesso à escola.

Há um razoável consenso de que a década de 1980 marca uma inflexão positiva na história da Educação brasileira que, finalmente, começa a ganhar uma centralidade no Estado brasileiro. Primeiro, com a Emenda Calmon, de 1983, que estabeleceu a vinculação de impostos para a Educação e, principalmente, com a Constituição de 1988 que tornou o ensino obrigatório um direito subjetivo. A natureza pública da Educação é realçada na Constituição Federal de 1988, não só pela expressa definição de seus objetivos, como também pela busca explícita de estruturação de todo o sistema educacional. Desde então, há um esforço político para construir no Brasil, a despeito das idas e vindas, um sistema educacional a partir de políticas de Estado, tendo como base o regime de colaboração entre os entes federados e a participação dos poderes e sociedade.  Isso, na prática, exige que o governo federal evoque para si a responsabilidade pela garantia da oferta equitativa e de qualidade da Educação. Esse período, cheio de contradições e virtuosidades, tem avanços importantes nos governos Lula e Dilma, sofre um profundo abalo com a assunção de Michel Temer ao poder  (por exemplo, com a criação do teto - limite máximo - para os gastos com despesas primárias dos poderes Executivo, Judiciário e Legislativo por vinte anos) e caminha para grandes retrocessos com as propostas do Governo Bolsonaro que começam a se materializar com as primeiras medidas do Ministério da Educação, que tomou posse em janeiro de 2019.

A exclusão educacional brasileira ainda é imensa. A população acima de 18 anos é formada por 55% com o nível médio incompleto. O analfabetismo é de 8,5% e o analfabetismo funcional de 30%. A população brasileira que compõe o extrato dos 20% mais ricos possui uma escolaridade média de 10,73 anos, acima do índice médio da Itália e Espanha. Já a população composta pelo extrato dos 20% mais pobres possui uma escolaridade média de 5,40 anos, abaixo da escolaridade média de Honduras e El Salvador.

As desigualdades e diversidade sociais e econômicas brasileiras refletem-se na sua dinâmica educacional e um projeto de universidade livre precisa contribuir para responder a esse desafio. Esse projeto precisa ser um exemplo dinamizador de como a sociedade civil pode se organizar para contribuir com o fortalecimento da cidadania por meio da democratização do conhecimento – expressando assim mais uma possibilidade de reconexão da sociedade brasileira consigo mesma.

Como exemplo, devemos citar que, na contemporaneidade, precisamos estabelecer políticas públicas que apontem para a dinâmica educacional de jovens com amplo acesso à escolarização e por isso precisam ir além daquilo que a própria escola oferece. Tais jovens são muitas vezes aprendizes independentes e buscam novas formas de aprendizagens. Por outro lado também, é necessário criar ações que possibilitem a profissionalização de jovens e adultos que foram expulsos precocemente da escola e também daqueles que, tendo completado a escolarização obrigatória, devem ter acesso a processos educacionais que os mantenham articulados com a necessária educação ao longo da vida.

A dinâmica demográfica, com o aumento do percentual de adultos e idosos na população, apresenta ainda novos desafios de manutenção da conexão dessas por meio de atividades educacionais.

Uma universidade livre deve, também, enfrentar o desafio da formação continuada dos professores da educação básica, muitas vezes submetidos a processos burocratizados de ensino, por mera lógica de ascensão funcional, desprezando-se, desse modo, um processo que pelo sentido existencial deve ser convertido sempre numa oportunidade única de descobertas e encantamento pela vida e do processo de ensino-aprendizagem. É possível afirmar que, em todos esses casos, o conceito da universidade livre tem contribuições relevantes por vários meios:

  • Estabelecimento de cátedras;
  • Cursos;
  • Debates, fóruns, reuniões, seminários;
  • Outorga de títulos honoríficos;
  • Universidades de verão;
  • Certificação de saberes e competências;
  • Massive open online course (MOOC);
  • Publicações de livros;
  • Concursos E premiações;
  • Excursões;
  • Integração com programas de ensino, pesquisa e extensão das instituições das redes de educação básica e superior, associadas aos sistemas formais de ensino.