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RECÔNCAVO ABSOLUTO: SUA MAGIA, SEUS LICORES

Detalhes
Publicado: 08 Janeiro 2022

“O melhor o tempo esconde
Longe, muito longe
Mas bem dentro aqui…”

Trilhos Urbanos – Caetano Veloso

Cheguei no Recôncavo com dez meses de idade. Era fevereiro de 1965. Meus pais separaram-se logo após o meu nascimento e a minha mãe, com dois filhos pequenos, mudou-se para Teodoro Sampaio, onde existia a Fundação Serviço Especial de Saúde Pública – FSESP, instituição em que ela trabalhava.

O nome da cidade é uma homenagem àquele que foi o engenheiro mais famoso do final do império e do início do século XX e que nasceu ali. À época o povoado denominava-se Bom Jardim e pertencia a Santo Amaro. Era constante a citação de Teodoro Sampaio (1855-1937) como filho ilustre daquela cidade e, naquele lugar de negros, para nós, crianças, era meio non sense quando destacavam que ele era negro, afinal, por que não seria? Soou estranho quando alguém contou que em 1879, os membros do Gabinete de um Ministro recusaram-se a publicar o nome de Teodoro Sampaio como integrante da Comissão Hidráulica do Império, para não humilhar os outros engenheiros, brancos. Seu nome foi publicado em separado numa edição posterior. É possível que essa tenha sido a primeira aula sobre as dificuldades que teríamos na vida, mas tudo era muito novo no mundo para nos preocuparmos com isso.

Teodoro Sampaio, com cerca de sete mil habitantes, nas cabeceiras do Recôncavo, localiza-se entre três polos que exercem forte influência sobre esse município: a sudeste fica Salvador (96 km, com 2,9 milhões de habitantes), a oeste temos Feira de Santana (46 km, 600 mil habitantes) e a nordeste temos Alagoinhas (35 km, 100 mil habitantes). Esses três polos de diferentes grandezas, exercem forças atrativas irresistíveis para um pequeno município, notadamente quando sabemos que o Brasil sempre careceu de políticas de fortalecimento dessas comunidades.

Essa proximidade a centros maiores se traduziu no seu esvaziamento permanente. Sem potência para resistir à atração desses grandes centros do seu entorno, Teodoro é como um núcleo submetido a forças inerciais que dele tudo retira.  Ou, quase tudo! Ontem, hoje e amanhã, onde há seres humanos, o mundo será reinterpretado e, assim, reinventado. Permanentemente. Histórias são criadas sobre a dor, a chuva, o desejo, o solo, o choro, as estrelas, a alegria, os ventos. Tecnologias são geradas para a comida, a casa e a cura. A arte é inventada para nos salvar da vida. Deuses são criados para nos livrar da morte!

Quando há gente convivendo, um cantinho qualquer esquecido do mundo interage com as forças cósmicas sem que ninguém precise descobri-lo para que isso seja sempre extraordinário. Enquanto houver dia, noite, sol, chuva e convivência, as virtualidades humanas e as suas experiências singulares serão infinitas. A invenção permanente da vida, a partir de cada realidade humana, social e cósmica é a magia mais admirável do mundo.

E o Recôncavo caprichou em magia: Teodoro desenvolveu-se como uma Macondo de Garcia Marquez, realisticamente fantástica. Lá cresci, com direito a circos, ciganos, histórias, deuses – e tudo mais que as pessoas inventam quando são esquecidas do resto do mundo, seja na Nova Guiné, numa Planície do Rio Danúbio, no Saara, no Curuzu, no Harlen, ou num cantinho perdido do Recôncavo da Bahia.

O Recôncavo é o nordeste molhado pelo mar, pelas chuvas e pelos rios. Integra os domínios da imponente Mata Atlântica, não obstante ela seja tão rara de ser encontrada – transformada em cinzas para liberar áreas para a agropecuária, em lenha para os engenhos de açúcar, em madeira para barcos e para tantos outros usos. O desmatamento aqui foi tão rápido e intenso que nos meados do século XVII o Recôncavo já importava lenha do sul da Bahia.

Gilberto Freyre, no livro “Nordeste”, integra o Recôncavo a um conjunto de territórios da região que é diferente daquele seco, dos sertões de areia seca rangendo debaixo dos pés: “O Nordeste do massapê, da argila, do húmus gorduroso é o que pode haver de mais diferente do outro, de terra dura, de areia seca. A terra aqui é pegajenta e melada. Agarra-se aos homens com modos de garanhona[…] A qualidade do solo tornou possível o avanço civilizador da cana em várias outras terras do Brasil. Mas a estabilidade de sua cultura no extremo nordeste e no Recôncavo se explica por condições favoráveis de solo, de atmosfera, de situação geográfica. ”

É bastante conhecida a emergência do complexo canavieiro nas áreas baixas do centro-norte do Recôncavo (nos solos localmente denominados massapês), associado, no Sul e ao norte de Salvador, à produção de gêneros alimentícios, madeiras e fumo. Nesse processo, os colonizadores portugueses dizimaram dezenas de aldeias tupinambás e fizeram do Recôncavo um dos principais destinos da diáspora africana. O Recôncavo sempre será, para todo o Brasil, uma referência para estudos de áreas como geologia, oceanografia, pedologia, economia, sociologia, antropologia, literatura, música, artes plásticas e religiosidade.

Como é próprio de cidades como Teodoro Sampaio e outras do Recôncavo, tínhamos o nosso Francisco, o Homem, um ancião errante de quase 200 anos, que passava com frequência por lá, divulgando as canções compostas por ele mesmo. Lá também havia um mistério que nunca se esclareceu, como foi a morte de José Arcadio, em Macondo. Da mesma forma que havia época de trovoada, época de pipa e o tempo de tanajura, também havia o tempo dos mistérios. A cada estação uma nova história assombrava os moradores daquele lugar. Às vezes uma história vinha acompanhada de conselhos para evitar tragédias e então muitos preferiam seguir as penitências estabelecidas por seus feiticeiros (padres, pastores, mães de santo, médiuns, rezadores e parteiras) para evitar que se cumprissem as sentenças catastróficas anunciadas nas histórias. As penitências poderiam ser uma pedra preta debaixo do pote, a ida a uma missa, uma oração especial, encomenda a um pai de santo ou uma reza de folha.

No Recôncavo e particularmente em Teodoro, vicejam assombrações em todos cantos. Gilberto Freyre, que escreveu um livro sobre o assunto (Assombrações do Recife Velho) se encantaria com esses nossos fantasmas. As nossas histórias são tão incríveis quanto as assombrações da Veneza Pernambucana. A intensidade da integração entre vivos e mortos é quase completa. Só não era mais crível por conta do desespero das pessoas diante da morte de alguém próximo: Afinal, se no dia a dia todos, mortos e vivos, vivíamos imbricados, porque chorar tão atlanticamente a partida de uma pessoa querida?

Minha mania de ordenamento me levou a agregar as assombrações do Recôncavo em três grupos: ambientais, personificadas e animais. As assombrações ambientais são aquelas que aparecem em espaços mal-assombrados: O mercado que já foi um cemitério, uma casa onde alguém morreu em circunstâncias especialíssimas, um prédio abandonado, uma lagoa encantada, o trecho de uma estrada onde houve um acidente ou uma emboscada; as assombrações personificadas são aquelas almas que possuem CPF mesmo no além: Um noivo que morreu no dia do casamento; o cavaleiro da meia-noite,  a mulher de fora que morreu e procura o caminho de volta para Salvador, a procissão das almas, o homem do saco; Temos também as assombrações animais, como a caipora, o boitatá e o curupira. E, num grupo à parte, temos ainda as assombrações que são interfaces daquelas categorias – e aqui o mais famoso é o lobisomem.

O Recôncavo é um território do realismo mágico e que encontrou uma tradução à altura em João Ubaldo Ribeiro, cujo testemunho, presente em “Viva o Povo Brasileiro”, invoco para provar que não estou a mentir. Por isso, não tenho dúvidas sobre a existência de uma ligação subterrânea entre Teodoro Sampaio e Aracataca na Colômbia, por meio de uma gruta onde se encontram os moradores de Macondo e do Recôncavo que desencarnaram e que ficam ali, conversando e preparando novas histórias para quando ressuscitarem. É nessa gruta que Gabriel Garcia Marquez e João Ubaldo Ribeiro se esconderam quando cansaram da vida entre nós.

Minha mãe integrou, desde a década de 1950, as primeiras gerações dos “agentes sociais de saúde” (visitadoras sanitárias) do Brasil como servidora da Fundação Serviço Especial de Saúde Pública – FSESP, serviço pioneiro no País em assistência, que empregava o trabalho de pessoal auxiliar para o atendimento de grupos como gestantes e crianças, e no controle de doenças transmissíveis. Na FSESP, as visitadoras sanitárias assistiam regularmente nos domicílios às mães e seus filhos recém-nascidos, estando sob sua tutela uma área geográfica e populacional.

O papel que minha mãe desempenhava nessa pequena cidade, que tinha apenas um médico (que também servia a outros municípios), era a chave para que eu fosse conhecido e querido em todo aquele lugar. Eu corria aqueles Recôncavos em todas as direções, nos seus massapês, areias e outras terras movediças, altos e baixos, mandiocais, canaviais, plantios de fumo, pastos e quintais, relacionando-me intensamente com aqueles que, depois, a academia chamaria de mestres de saberes populares, sambadeiras, sambadeiros, pais e mães de santo, bordadeiras, artesãos, cozinheiras, rezadeiras, capoeiristas, contadores de histórias.

Foi assim que tive acesso, por exemplo, às minhas primeiras aulas sobre o Recôncavo. Lembro-me dos trabalhadores de cana voltando para a cidade na entressafra e contando histórias dos baixios do Recôncavo: “Lá em baixo, em Salvador, tem é coisa…”. Sempre me impressionou aquela que, depois descobri, foi a minha primeira aula de geografia, quando um trabalhador me disse: “Eu saio daqui das ‘cabiceira’ do Recôncavo e vou descendo, cortando cana e só paro lá embaixo quando o rio Subaé vira mar”. Causa-me espanto ainda hoje pensar que um trabalhador rural, naquela época, tinha uma ideia tão precisa do Recôncavo – um anfiteatro voltado para a Baía de Todos os Santos, que toma o lugar do palco.

Minha mãe voltou a se casar, com Everaldo, famoso fabricante de licores do Recôncavo e servidor público dos Correios em Santo Amaro da Purificação, município próximo de Teodoro Sampaio. Caetano Veloso canta com precisão em “Jenipapo Absoluto”, sobre a importância do fabrico de licor na vida de algumas famílias do Recôncavo – terra tão propagada pelo sol de fevereiro, mas pouco lembrado pelo seu junho tão frio:

“Como será pois se ardiam fogueiras
Com olhos de areia quem viu
Praias, paixões fevereiras
Não dizem o que junhos de fumaça e frio
Onde e quando é jenipapo absoluto
Meu pai, seu tanino, seu mel
Prensa, esperança, sofrer prazeria
Promessa, poesia, Mabel.”

Everaldo tinha um pouco de José Arcadio, patriarca da família Buendía, “cuja desatada imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza, e até mesmo além do milagre e da magia”. Assim, estava sempre em busca de novidades para divertir a família e ter histórias para contar para os amigos. Uma brincadeira, uma história, um brinquedo na feira, um instrumento musical.  Sempre havia uma novidade!

O papel do meu padrasto nos Correios de Santo Amaro e suas profundas relações com aquela comunidade, por exemplo, me permitiram frequentar a casa de Dona Canô antes do mito ser criado. Algumas vezes acompanhei Everaldo ao trabalho em Santo Amaro e em visitas à casa dos Veloso. A proximidade com aquele mundo me fazia ter uma clara preferência pela mãe em relação aos seus filhos, já famosos. Interessante: lembro-me claramente de uma moça que trabalhou na nossa casa lamentando: “Dona Canô é muito legal. Já pensou se Dona Canô fosse mãe de Wanderlei Cardoso, Paulo Sergio ou Jerry Adriani e não desse Caetano Veloso?”. Sim, porque o Recôncavo além do samba de roda, sempre adorou músicas que depois passaram a integrar o que chamam de brega. Talvez por isso, depois que me afinei com a Tropicália, tenha passado a gostar tanto de ouvir Caetano Veloso cantando Fernando Mendes (Você não me ensinou a te esquecer) ou Odair José (Eu vou tirar você deste lugar) e Maria Bethânia a cantar Dalva de Oliveira (Calúnia) ou Carmen Costa (Eu sou a outra). Recôncavo Absoluto.

Aquele mundo me deu régua e compasso para questões fundamentais como a segurança necessária para não ter medo do Recôncavo que eu reencontraria no futuro. Nos anos da reitoria da UFRB, algumas vezes tive de ouvir, sem alterar o semblante (faz parte da liturgia do cargo), de professores e estudantes vindos das mais diversas partes do mundo, me dando aula sobre essa região e quase falando: “É lamentável que a UFRB tenha um reitor que não conhece o povo do recôncavo e não faz ideia do que é pisar no massapê nem da ancestralidade que tudo isso carrega”.

O trabalho de Everaldo nos Correios também foi relevante para um privilégio raro no interior. À época, alguns materiais dos Correios eram descartados por desvios extremos de endereços e, por isso, alguns livros, que nunca chegaram aos olhos a que estavam originalmente destinados, acabaram na nossa casa, o que nos permitia a convivência com livros numa terra sem bibliotecas e livrarias. Livros de química, filosofia, história, receitas de comidas e romances eram comuns na minha casa.

Aquela profusão de livros e o acesso desordenado a eles me deixaram marcas até hoje. Desenvolvi um interesse enciclopédico pelos mais diversos assuntos, não obstante, desde aquela época, soubesse que nem sempre teria capacidade de aprofundar os detalhes de todas as matérias.

Nossa família se tornou tão intensamente do Recôncavo que quando li “Viva o Povo Brasileiro” entendi como era vã a esperança que um dia eu tive de não ter um encontro cara a cara com a morte. Como ensina João Ubaldo: “De mortes bonitas é farta a memória do Recôncavo, tantos os santos homens que se defrontaram de maneira edificante com a gadanha da Grande Ceifadeira, assim legando às gerações subseqüentes exemplos inesquecíveis do bem morrer. Não há mesmo família ilustre que não se compraza em relembrar as diversas mortes belas que cada uma conta em seu acervo tanatológico, seja pelas derradeiras palavras exaladas, seja pelo manto de doçura e paz a envolver o preciso momento do trespasse, seja pelo estoicismo do moribundo, seja pela venusta paisagem ou especialíssimas circunstâncias a cercar os óbitos repentinos, seja pela comoção do povo nas exéquias – tudo isto fazendo com que nestas questões letais, não exista no mundo lugar tão ufano.”

Em 2022 meu padrasto, Everaldo, completaria cem anos, mas ele nos deixou bem antes, levando com ele parte daquele mundo mágico que para mim era completamente real. Repentinamente, em 21 de junho de 1975, chegou a hora de começar a organizar o meu acervo tanatológico e o meu imbricamento mais íntimo com o mundo dos mortos.

Durante todo o ano havia a fabricação de licor na nossa residência, mas a partir do final de abril a casa se tornava uma verdadeira fábrica de licores. O tempo todo chegavam carregamentos de umbu, maracujá, limão, cajá, laranja e, principalmente, jenipapo. Tudo era ocupado por bacias, baldes, funis, cachaça, álcool, sacas de açúcar, muito algodão (que serviam de filtro), ajudantes, e, muita paciência. As encomendas eram imensas e no final de maio começavam as entregas principalmente em Santo Amaro, Cachoeira, São Felix, Cruz das Almas, Feira de Santana, Alagoinhas, Terra Nova, Candeias, Camaçari e Salvador. Sempre que possível eu estava com ele. Everaldo contratava kombis para a entrega e também usava o nosso fusca (Placa CQ0079) nesse trabalho. Foi nele, num sábado chuvoso, na véspera de São João, na BR-324, perto de Feira de Santana, que ele partiu, após um acidente, para servir seus licores no céu.

Lembro que no velório um grupo conversava animadamente sobre o acidente, e eu, lógico, tentando entender tudo aquilo, me coloquei de modo a ouvir a conversa que girava em torno das causas do sinistro:  Afinal, como Everaldo poderia ter capotado, sozinho, naquela reta? Alguém, então, deu o veredito, inquestionável e supremo, com uma certeza típica do povo do Recôncavo: “rapaz, onde já se viu ficar dirigindo meio-dia? É a hora que Cristo morreu e o diabo pensa que dominou o mundo, não se deve dirigir na hora do almoço: essa é hora da guerra do céu e do inferno. Ou você pensa que foi fácil pra Deus ressuscitar Jesus? ”.

Continuamos em Teodoro até 1977. Minha mãe resolveu retornar ao sul da Bahia. O Jenipapo já não era absoluto!

“Cantar é mais do que lembrar
É mais do que ter tido aquilo então
Mais do que viver do que sonhar
É ter o coração daquilo.”

Acima: Teodoro Sampaio (1855-1937), (Folha de S. Paulo. anos 1930).

HISTÓRIAS DA UFRB E DO RECÔNCAVO

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Publicado: 03 Janeiro 2022

Modéstia à parte, conheço o Recôncavo como poucos!

Cheguei nesse pedacinho de planeta com onze meses de idade. Nasci em Coaraci, no sul da Bahia, mas a minha família mudou para Teodoro Sampaio (fotos abaixo), nas cabeceiras do Recôncavo e lá eu vivi até os doze anos. Em 1976 mudei para Itabuna, mas nunca mais quebrei meus laços com Teodoro. Estudei agronomia em Cruz das Almas, me especializei em solos e participei de estudos sobre meio ambiente em todos os ecossistemas associados a essa região.

Em 1992, passei a ser professor da Escola de Agronomia da UFBA em Cruz das Almas e participei, numa posição bem privilegiada, do processo de implantação da UFRB. Não sem razão, há muito sou cobrado para escrever de forma sistematizada sobre a minha participação na construção da UFRB e minha relação com o Recôncavo. Resolvi, então, fazer uma aproximação dessa tarefa por meio do meu blog. Sempre que a inspiração chegar, escreverei sobre essas temáticas. Esse será o nosso ponto de partida, mas como saber onde isso dará?

AS BIFURCAÇÕES DA VIDA E A ELEIÇÃO DE 2002 PARA DIRETOR DA ESCOLA DE AGRONOMIA

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Publicado: 03 Janeiro 2022

– Este é o primeiro texto da série HISTÓRIAS DA UFRB E DO RECÔNCAVO. 

A Escola vivia a agonia de uma crise que se arrastava há décadas. Único centro de ensino superior federal no interior da Bahia, falta de pessoal, dificuldade de acompanhar as inovações tecnológicas e acadêmicas que ocorreram em outros centros, com forte endogenia, sem nunca ter encontrado um lugar institucional sustentável no conjunto da UFBA e, para completar, no Provão (Exame Nacional de Cursos) aplicado pelo INEP em 2001, exibimos a pior nota de um curso de agronomia do País, fato que ainda se repetiria em 2005, já no ENADE (Essas notas inclusive seriam responsáveis pela primeira crise da UFRB, em 2007).

Iniciamos 2002 na perspectiva de mais uma eleição entre os velhos grupos de professores que se revezavam na Diretoria desde sempre. Naquela sucessão, dois candidatos colocaram-se nos seus polos tradicionais: Luiz Gonzaga Mendes, de um lado e Valfredo da Silva Pereira, do outro.

O professor Luiz Mendes possuía um discurso liberal e meritocrático com articulações no Governo Federal (Fernando Henrique Cardoso) e Estadual (Paulo Souto), tinha capacidade de captar projetos de estudos e consultorias na área do agronegócio e assim arregimentava, compreensivelmente, o apoio de jovens professores e do setor mais ligado à produção científica, cansados de tantas crises. O professor Valfredo Pereira possuía o apoio dos setores docentes mais à esquerda, servidores e estudantes engajados no movimento estudantil.

Conhecedor daquelas disputas, não me entusiasmava com nenhum dos dois candidatos. Foi fácil perceber que havia um pequeno segmento que não se sentia representado por aquelas candidaturas, professores e técnicos-administrativos mais jovens e estudantes, todos com preocupações acadêmicas e uma visão progressista da sociedade. Assim, formamos um grupo que envolvia professores como Gilka, Alícia, Warli, Carlos Augusto e eu, e servidores técnico-administrativos como Edson, Manuel, Aída e Florisvaldo. A esse grupo juntou-se o professor Geraldo Costa, da velha guarda, mas que também percebia a exaustão daquela disputa antiga e repetitiva. No início, Geraldo considerava impossível entrarmos naquela disputa, mas logo transformou-se num alicerce fundamental de todo processo que se desenrolaria nos anos seguintes.

Definimos que o nosso candidato seria o professor Warli. No final do processo, o nosso candidato definiu não se inscrever, apesar de todos os nossos apelos. Mais uma vez a eleição ocorreu entre os dois velhos grupos.

Como esperado, Luiz Mendes ganhou a consulta com ampla votação nos três segmentos. Votei em Valfredo por não acreditar no modelo de universidade/empresa apresentado pelo professor Luiz Mendes e também porque pelo histórico da nossa relação não haveria nenhuma possibilidade de composição. Eu participara do Movimento Estudantil quando ele havia sido Diretor da Escola de Agronomia na década de 1980 e a nossa relação sempre foi de embates duros, deixando arestas nunca resolvidas.

Em 2002, eu era Chefe do Departamento de Química Agrícola e Solos e o grupo vencedor da eleição tratou de anunciar que enquanto eu fosse a representação do Departamento não haveria diálogo com a gestão vindoura. A vitória daquele grupo político anunciava um período de turbulências para mim, então, aproveitando um convite dos professores Nicholas Comerford e Jorge Gonzaga, comecei a planejar a minha ida para um pós-doutorado na Universidade da Flórida, projeto que foi abortado pelos acontecimentos supervenientes. Aqueles dois anos após o retorno do doutorado foram bem produtivos, consegui os primeiros financiamentos de projetos de pesquisa, estava concluindo a minha quinta orientação no mestrado da Escola de Agronomia e com boas parcerias com programas de pós-graduação e pesquisadores da EMBRAPA, CEPLAC, UFS, UESC, UFV e Universidade da Flórida.

Como muitas vezes ocorria na nossa Escola, a divulgação dos resultados da eleição não significava o fim das disputas e do processo eleitoral – os recursos e apelações eram comuns. O grupo derrotado, tendo o controle da Congregação da Escola de Agronomia, buscou alguma falha no processo eleitoral com vistas a anular eleição. Como sempre, conseguiu: Identificou-se que a representação estudantil já havia completado o seu mandato na Congregação e não houve ato oficial prorrogando os mandatos dos estudantes. Assim, a Justiça Federal determinou inválidos todos os atos da Congregação que contou com os votos dos estudantes. Isso incluía, é claro, a anulação da lista tríplice e, por consequência, a necessidade de uma nova eleição.

Confesso, eu considerava aquela anulação tempo perdido – era nítido que a comunidade expressou o desejo genuíno de ter o professor Luiz Mendes na sua direção. Com isso, criei arestas com o grupo que defendeu a tese da anulação. O professor Mendes falava, com razão: “Podem anular dez eleições, eu continuarei ganhando todas!”

Felizmente a vida é um livro a ser escrito por autores que nem sempre controlamos, e nos meses seguintes alguns fatos mudaram radicalmente a correlação de forças na Escola de Agronomia como poucas vezes na sua história. Em agosto, na Reitoria da UFBA, o Professor Heonir Rocha (com vínculos com Cruz das Almas e aliado do Professor Luiz Mendes) foi sucedido pelo professor Naomar Monteiro de Almeida-Filho e, em outubro, ocorreu a eleição de Lula para a Presidência da República. Com isso, tivemos uma clara fissura na hegemonia exercida pelo professor Luiz Mendes e ele, ao perceber isso, definiu não se candidatar para o novo processo de escolha de Diretor, anunciando o apoio ao professor Alino Santana que passou a ser o concorrente do Professor Valfredo na disputa.

Mais uma vez o nosso pequeno grupo definiu apoiar uma candidatura alternativa, representada pelo professor Warli e começamos a fazer campanha.

No último dia das inscrições, o professor Warli desistiu da candidatura. O nosso grupo definiu que ainda assim nos manteríamos no pleito com um candidato – precisávamos, no mínimo, marcar a nossa posição. Meu nome foi escolhido para representar o grupo. Contribuiu para isso eu ser o mais conhecido da comunidade acadêmica, afinal quinze anos antes eu havia atuado intensamente no movimento estudantil naquele campus e no período após a graduação tinha desenvolvido ações que geravam alguma visibilidade social. Não tive opção. Lembro que a professora Gilka redigiu o requerimento e imprimiu meu currículo – apresentamos o programa de gestão já elaborado para o nosso candidato anterior.

Naquele momento, a Escola estava bem dividida entre os dois candidatos e os setores tradicionais da esquerda mantiveram o seu apoio ao candidato Valfredo – havia um argumento razoável para isso: aquela disputa já se desenrolava há um ano e a minha candidatura foi colocada muito tarde. Eu brincava: “Não preciso de apoio para ganhar, preciso de apoio para governar!”. Com isso, todos ficavam tranquilos. Afinal, era um consenso que a minha candidatura não tinha chance!

Para a surpresa de todos, tivemos uma vitória avassaladora nos três segmentos, sempre com votação acima de 70%. Lembro que alguém do nosso grupo brincou: os novos ventos que sopram no País chegaram ao Recôncavo profundo (“E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo, meu medo”).

Durante a campanha, apresentamos a ideia de transformação da Escola de Agronomia numa instituição independente da UFBA. Eu insisti nessa ideia, mas isso parecia algo distante do debate da comunidade e, mesmo com a ascensão de Lula e o tema da interiorização do ensino federal superior na Bahia estar presente nos pronunciamentos do novo reitor da UFBA, isso não parecia uma temática pertinente para aquele nosso contexto (como abordarei em outros textos, depois aprendemos que essa reação à inovação não é restrita à comunidade da Escola de Agronomia).

É importante registrar que em meio a tantas instabilidades, o Diretor Pró-tempore, Professor Clóvis Pereira Peixoto, foi responsável por uma transição tranquila e transparente, colaborando assim para que o processo de transmissão de cargo ocorresse sem problemas. Um indicativo importante dessa postura foi a sua presença na minha solenidade de posse – fato raro naquela comunidade.

A nossa posse ocorreu na manhã do dia 14 de março de 2003. A percepção política de Geraldo Costa transformou a solenidade num evento memorável. Ele percebeu que era o primeiro grande evento que ocorria no Recôncavo desde a posse do Presidente Lula e buscou transformar esse momento num ato político de apoio ao nosso projeto. Sonia Bahia, esposa do professor Geraldo, esmerou-se em organizar um café da manhã típico do Recôncavo que serviu trezentos convidados. O sabor dos quitutes foi falado aos quatro ventos e por muito tempo. Ainda hoje devemos os custos dessa festa ao nosso professor. A presença de Prefeitos, Deputados e lideranças de toda a Bahia foi uma clara demonstração de que todos esperavam a apresentação de um projeto de impacto naquela manhã e ele veio na forma da proposta de criação da UFRB. A comunidade da Escola de Agronomia assistiu, um pouco assustada, àquilo tudo.

Demonstrando uma intenção que se expressaria na prática nos anos seguintes, o professor Naomar convocou o Conselho Universitário da UFBA que, sinais dos tempos, realizou a sua primeira reunião fora de Salvador. Naqueles três anos que seguimos até o início das atividades da UFRB, o professor Naomar visitou a Escola de Agronomia mais do que a soma de todos reitores da UFBA desde 1967, quando o campus de Cruz das Almas foi incorporado à universidade.

No dia da posse, o Conselho Universitário da UFBA autorizou o Reitor a criar uma comissão com vistas a apresentar o projeto de desmembramento da Escola de Agronomia e a criação da Universidade Federal do Recôncavo. Numa demonstração de compromisso com aquele projeto, Naomar indicou o seu Vice-Reitor, Francisco Mesquita para coordenar a Comissão.

Lembro que dias depois da posse, o pequeno grupo mais orgânico que dava sustentação à Diretoria me chamou para uma reunião. Em resumo, me foi dito que não era possível priorizarmos o projeto de luta por uma universidade naquele momento, precisávamos focar na resolução dos problemas da Escola de Agronomia.

A minha resposta foi no sentido de concordar com as preocupações, afinal a Escola de Agronomia realmente tinha problemas das mais diversas dimensões. Ponderei, no entanto, que as raízes dos nossos problemas estavam na institucionalidade constituída no processo de incorporação da Escola à UFBA e que não conseguiríamos ir longe na busca por soluções das nossas questões naquele arranjo institucional. Naquela estrutura não haveria salvação para a nossa Escola. Precisávamos usar a posição de mais antiga instituição federal de ensino sediada no interior da Bahia (desde 1859) para liderar um projeto de fôlego, afinal, o Governo Lula e o Reitorado de Naomar eram uma oportunidade única que não tínhamos o direito de abandonar.

Nessa noite, houve quem ponderasse sobre a pertinência de lutar por um Centro de Ciências Agrárias ou por uma Universidade Federal Rural da Bahia (UFRB). Felizmente venceu o projeto da Universidade Federal do Recôncavo (UFR).

Definimos naquela reunião que o esforço para a conquista da Universidade passaria a ser o principal eixo da gestão que se iniciava. Eram os primeiros dias de abril de 2003. Estávamos prontos para a luta!

Universidade Federal de Dona Canô – UFRB

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Publicado: 25 Dezembro 2021

Paulo Gabriel Soledade Nacif

“Não tenho escolha, careta, vou descartar
Quem não rezou a novena de Dona Canô”

Caetano Veloso

Hoje, 25 de dezembro, é dia do Recôncavo lembrar de Dona Canô. Há nove anos, neste dia, ela nos deixava em direção ao Orum!

Depois de muitos anos de implantada, a UFRB é uma realidade e a história da luta pela sua constituição foi, compreensivelmente, ficando para trás. Outro dia um intelectual fez questão de declarar que “a mobilização pela criação da UFRB pouco significado teve, na medida em que a expansão do ensino superior era algo anteriormente definido pelas estruturas de poder”. Prosseguindo, ele usou como prova de sua tese o Programa REUNI, que veio logo após a criação da universidade. Não estava presente no momento dessa declaração. Caso tivesse tido oportunidade, perguntaria a ele por que então a expansão do ensino superior federal na Bahia começou exatamente aqui? Por que começou aqui no Recôncavo e não em outras regiões com maior dinamismo econômico e maior importância política?

A Escola de Agronomia era um bom motivo? Um campus, com apenas um curso de graduação  e um mestrado, até poderia ser uma boa razão, mas não era suficiente para sensibilizar quem tomava decisões. Não há outro caso de um  campus, pequeno como o nosso, transformado em sede de uma nova instituição à mesma época.

Não tenho dúvidas, a mobilização da comunidade foi o fator determinante para que, registre-se, contra um prognóstico inicial presente no próprio Governo Federal, a expansão do ensino federal superior na Bahia começasse pelo Recôncavo. A mobilização chegou a câmaras de vereadores, escolas, sindicatos, Clube de Diretores lojistas, deputados, senadores. Mobilizamos todo o Recôncavo e a Bahia. E, no percurso da UFRB, precisamos lembrar da participação de Dona Canô nessa história. 

Ainda em 2003, fui levado a Dona Canô, que logo disse: “Uma universidade vai ser tão bom. Eu me preocupo tanto com os jovens, eles param de estudar, ficam sem emprego. Eu vou falar com Lula”. E depois disso, ela participou ativamente da campanha, emprestando a sua imagem, sua assinatura, vestindo a camisa, dando declarações e, inclusive, falando com Lula. Em uma reunião em Brasília, após ser cobrado por grandes lideranças políticas sobre a criação da UFRB, o Presidente Lula disse com muito carinho: “Essa universidade do Recôncavo é um pedido de Dona Canô!” O professor Henrique Paim, ex-Ministro da Educação, sempre lembra da preocupação do Presidente Lula em cumprir os acordos com Dona Canô. Ele brinca: “Ela era poderosa!”

Em 2004, quando houve a reunião do Conselho Universitário da UFBA para aprovar o desmembramento da Escola de Agronomia para a criação da UFRB, lá estava Dona Canô no Salão Nobre da UFBA. Um Conselheiro, que fazia oposição ao mandato do Reitor Naomar, me chamou à parte e brincou: “Vocês estão indo muito rápido! Uma instituição como a UFBA não pode ficar sem um curso de Agronomia! Eu ia pedir vista ao Processo, mas fique tranquilo, não vou fazer isso na frente de Dona Canô”.

Em 2006, quando o Presidente Lula veio lançar a UFRB, lá estava Dona Canô. Ela foi até Cachoeira, visitou as obras do Quarteirão Leite Alves com o Presidente, mas a família preferiu que ela não o acompanhasse até Cruz das Almas para não cansá-la demais.

E, por favor, não duvidem: Dona Canô, até o final, sempre teve a exata dimensão do que fazia. Em fevereiro de 2012, portanto, poucos meses antes dela partir, em visita a Santo Amaro, com uma delegação da UFRB, fomos convidados para tomar um suco com Dona Canô. Ela disse: “A universidade agora tem que vir para Santo Amaro. Uma universidade vai ser tão bom. Eu sempre me preocupo tanto com jovens, eles param de estudar, ficam sem emprego.” Exatamente o que tinha dito há nove anos.

Nessa última vez em que estive com ela, chegamos à casa, conduzidos por Rodrigo, um de seus filhos. Eu estava muito preocupado em causar algum incômodo a uma senhora de 104 anos. Disse-lhe: “Benção, Dona Canô”. E ela respondeu, brincando, com um sorriso delicado e me deixando à vontade: “Meu filho eu abençoo tanta gente simples aqui em Santo Amaro, quanto mais um REI-TOR”.

Sua vida merece ser lembrada e celebrada!

Lembro que ao final dessa nossa última visita, escutei de uma professora: “Em meio a tantas coisas geniais que Caetano Veloso e Maria Bethânia fizeram, ainda acho que a maior obra-prima deles é Dona Canô.” Realmente, revelar para o Brasil o encanto e a sabedoria singular de uma mulher comum do Recôncavo é uma tarefa para gênios!

Um dia ela voltará numa “estrela colorida e brilhante, de uma estrela que virá numa velocidade estonteante” e, mais uma vez, “aquilo que nesse momento se revelará aos povos, surpreenderá a todos, não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto, quando terá sido o óbvio“.

Felicidade é brinquedo que não tem!

Detalhes
Publicado: 22 Dezembro 2021

Paulo Gabriel Soledade Nacif

“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. ”  (Trecho do Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade, 1928).

O personagem foi inspirado em São Nicolau, arcebispo de Mira na Turquia, no século IV, mas foi somente em 1931, por meio de uma campanha publicitária da Coca-Cola, que o Papai Noel ganhou o aspecto mais próximo do que conhecemos.

É incrível constatar que em 1932, já no ano seguinte à campanha da Coca-Cola, um baiano de Teodoro Sampaio enfrenta o mito de Papai Noel produzindo uma pérola preciosa, única e inesquecível – “Boas Festas”. A música estrutura o poema ou é o texto que inspira a música?

Essa música do meu conterrâneo Assis Valente salva o meu Natal. Sempre sinto muito orgulho quando vejo que o Natal brasileiro, apesar do Bom Velhinho com todo o seu excesso de roupas, todo o seu consumismo, suas frases feitas, sua neve e seus pinheiros, floridos de hipocrisias, foi “antropofagado” – digerido pela genialidade de Assis Valente, baiano lá de Bom Jardim (antigo nome de Teodoro Sampaio), nas cabeceiras do Recôncavo, à época um distrito de Santo Amaro. É isso: acontece que eu sou baiano… Assis Valente engoliu, regurgitou e novamente remastigou o colonizador.

“Boas Festas” é uma música tipicamente brasileira, cheia de ironias e desafios escondidos numa falsa ingenuidade.

Veja que gênio!

Ele começa candidamente, mas eufórico, feliz:

“Anoiteceu

E o sino gemeu

E a gente ficou

Feliz a rezar”.

Rapidamente, ele aproveita o momento de submissão e candura e faz o seu pedido:

“Papai Noel, vê se você tem

A felicidade pra você me dar”.

Como nunca recebe o presente, Assis Valente entra com toda a ironia de quem conhece todos os sotaques da tristeza:

“Eu pensei que todo mundo

Fosse filho de Papai Noel

E assim felicidade

Eu pensei que fosse uma

Brincadeira de papel

Já faz tempo que eu pedi

Mas o meu Papai Noel não vem

Com certeza já morreu

Ou então felicidade

É brinquedo que não tem.”

Tudo isso numa música linda, cheia de ritmo, lirismo, tensões e antagonismos que penetra e embala o Natal de norte a sul ou, como diz John Lennon: Todo o natal – do enfermo e do são, do rico e do pobre, do branco e do negro, do amarelo e vermelho.

A música “Boas Festas” é uma ópera, uma peça de teatro, um livro, um filme e também uma série para uma dessas plataformas da era digital. Faz a gente imaginar mil pessoas, idosas, adultas, jovens e crianças tristes que aguardam pela visita de um Papai Noel que nunca chega. É um pouco a história de vidas como as nossas, nada heroicas, comuns, com frustrações no passado e à espera das que surgirão nas esquinas e becos por onde vamos caminhar. Felicidade é brinquedo que não tem!

Como o mundo é cheio de contradições, o conjunto “As Melindrosas” (1978), Simone (1995), Gaby Amarantos (2013) e até Milton Nascimento (2015) fazem o movimento inverso do pretendido por Assis Valente e não se envergonham de defender o Papai Noel da Coca-Cola: Transformam essa obra-prima numa monótona batida de carnaval, eliminando toda a complexidade da criação. Antropofagia reversa?

Assis Valente, depois de viver em Alagoinhas, Senhor do Bonfim e Salvador, mudou-se com 17 anos para o Rio de Janeiro. Lá foi protético, teve seus desenhos publicados em revistas, escreveu peças de teatro, mas foi como compositor que alcançou grande sucesso nas vozes de ícones como Carmem Miranda, Dorival Caymmi, Orlando Silva e Herivelton Martins.

A sua música “Brasil Pandeiro” dialoga à perfeição com “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso. Para essa gente bronzeada mostrar seu valor é necessário abrir a cortina do passado, tirar a mãe preta do cerrado. E botar o rei congo no congado.

Ele também compôs “Meu Moreno Fez Bobagem” e “Camisa Listrada”. Ainda hoje há imbecis para estranhar como Chico Buarque escreve letras de algumas músicas tão femininas, então, imagine como era na década de 1940 um compositor que escreveu: “Meu moreno fez bobagem / Maltratou meu pobre coração / Aproveitou a minha ausência / E botou mulher sambando no meu barracão / Quando eu penso que outra mulher / Requebrou pra meu moreno ver / Nem dá jeito de cantar /Dá vontade de chorar/ E de morrer”.

Enfrentando preconceito de cor, possivelmente tendo que explicar a sua orientação sexual, sempre com dificuldades de recolher os seus direitos autorais que hoje o transformariam num milionário e lidando com vícios como a cocaína, não é por acaso que Assis Valente é autor de expressões ainda populares no Brasil, como por exemplo nos versos: “Deixa estar jacaré/ Que o verão vai chegar/ Quero ver se a lagoa secar.”

A criatividade genial desse baiano o fez também um dos precursores das marchinhas juninas e já em 1933 ele compôs a música “Cai, cai, balão”, sempre com ironias tristes: “Eu também sou um balão / Vou subindo de mentira / No azul da ilusão / Meu amor foi a fogueira / Que bem cedo se apagou / Hoje vivo de saudade / É a cinza que ficou!”

Esse gênio da raça morreu no dia 06 de março de 1958, aos 47 anos. Num bilhete, deixou o último “verso”: “Vou parar de escrever, pois estou chorando de saudade de todos, e de tudo. ”

É, Papai Noel: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.

 

 

  1. 01 de Novembro: Dia do Recôncavo
  2. Universidade Livre, Educação Popular
  3. Eu Acredito em Livros de Auto-Ajuda?
  4. Orgulho das Heranças (malditas): Um pouco de mim, antes de mim

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